Brais Arribas: “Cumpre que nos dêmos conta da importância que tem a realização de um testamento vital” 11 Julho, 2018 – Publicado em: Alicerces, Entrevistas

Após a publicação da entrevista a Afonso Becerra de Becerreá, publicamos hoje a entrevista de Teresa Moure a Brais Arribas autor de Sobre a eutanásia. Quando decidir que uma morte é vital, o volume gêmeo com que  se apresenta Alicerces, a nova Coleção da Através editora.

Sob a direção de Teresa Moure, Alicerces apresentará especialistas que tratarão diferentes áreas de pensamento, arte ou sociedade, com uma focagem divulgadora, afastada dos usos académicos. Sairão do prelo dous títulos cada semestre e serão sempre prologados por uma pessoa especialista do lado português.

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Brais Arribas

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O teu é um livro rigoroso e bem documentado, onde procuras aprofundar na questão da eutanásia com diferentes perspetivas, duma maneira racional, mas simultaneamente, atenta às emoções. Lá é que podíamos começar: em que condições seria vital decidir sobre a morte?

(Muito obrigado pelas amáveis palavras) Um dos aspetos em que mais se incide no livro é na necessária inscrição da eutanásia, tal e como a concebemos hoje, como uma técnica sanitária que facilita o falecimento a pessoas gravemente enfermas, numa problemática mais ampla e geral que remete, atrevia-me a dizer, ao atributo essencial da condição humana: a sua mortalidade. De esse ponto de vista, cumpre que sejamos conscientes de que o facto de procurar as vias e os meios que nos deem a oportunidade de morrer bem afetam todas as pessoas, pelo que em princípio todos, sem condição ou restrição alguma, deveríamos levar a cabo uma reflexão prévia sobre o tipo de morte que consideramos boa, desejável ou quando menos preferível. Devemos ter em conta, ademais, que as novas legislações sobre os direitos do paciente, melhoráveis em qualquer caso, dão maior capacidade de controlo ao enfermo sobre a sua doença, de modo que tem que dar um consentimento informando para lhe serem aplicadas terapias ou tratamentos, dispondo da capacidade para os recusar, em caso de que os considere fúteis ou desnecessários. Não obstante, se enquadrarmos a questão no contexto do debate contemporâneo sobre a despenalização da eutanásia, cumpre dizer que ainda sendo vital poder decidir sempre, de modo que se garanta a autonomia da pessoa para gerir a sua vida e, portanto, também a sua morte, como parte não separável desta, há determinadas situações onde é especialmente urgente fazê-lo. Falamos de doentes terminais ou com doenças incuráveis e incapacitantes, com um alto grau de dependência e que padecem uma forte dor, já seja física ou psíquica, e para os quais as medidas paliativas não deram resultado. A estas pessoas que desejam morrer a sociedade, e portanto a legislação que estabelece o permitido e o proibido, deve dar-lhes uma resposta satisfatória, sem abandoná-los à sua agonia e sofrimento.

Se tivesses que assessorar alguém para fazer um testamento vital, que premissas situarias como fundamentais?

O primeiro que faria é felicitar pela decisão. Cumpre que nos dêmos conta da importância que tem a realização de um Testamento vital, já que na atualidade é a única garantia da que dispomos como cidadãos para expressar os nossos desejos sobre os limites da prática médica que estamos dispostos a suportar num caso terminal ou de inconsciência ou incapacidade que nos imposibilitasse de poder decidir. Para garantir que se cumpra a nossa vontade, é importante que o documento contenha, ao menos, uma declaração dos valores pessoais que guiem a prática sanitária que se deseja padecer, de modo que sirvam como critério entre diversas possibilidades médicas e ajudem a adotar tais resoluções; uma série de instruções sobre a aceitação ou rejeição de determinadas práticas sanitárias, de modo que se evite a obstinação médica; a nomeação de um representante que esteja totalmente informado da evolução da situação clínica e que participe na tomada de decisões substituindo ao paciente; deixar constância de outros aspetos, como se se quer doar os órgãos, receber assistência religiosa, etc.; e, finalmente, assegurar-se de que o documento tem garantia jurídica e que é conhecido pelo ambiente mais próximo. A máxima difusão ajuda a garantir que as nossas vontades são respeitadas.

E em que situação não serias partidário de tomar essa decisão, especialmente se tivesses que decidir sobre outra pessoa?

Decidir por outra pessoa sempre é complexo, substituí-la em instantes decisivos como os que se põem em jogo num contexto de morte próxima e eventual agonia imagino que deve produzir uma sensação de vertigem muito acentuada. Para evitar ou reduzir o impacto de tais situações, onde os sentimentos estão à flor de pele e onde é muito difícil manter a calma e o sossego necessários para pensar com tranquilidade, é muito importante que tanto o pessoal médico como os achegados tenham um conhecimento o mais profundo possível da mentalidade do paciente, dos seus valores, crenças e convicções, de modo que se ajustem a elas o máximo possível. Ainda assim, há situações evidentemente muito dramáticas, especialmente aquelas que afetam menores e onde os progenitores afetados se movem numa esfera emocional especialmente angustiosa. Nessa medida, a eventual legislação sobre o direito a decidir deve ser muito escrupulosa fixando os termos e condições onde é possível adotar uma decisão de antecipação da morte que possibilite que seja tranquila, aprazível e sem qualquer dor.

Independentemente das posturas que assumamos relativamente ao assunto, pareceria que nesta, como em outras questões de consciência todo o debate está atravessado pelo tabu que, ainda hoje, constitui o tema da morte. Entre o hedonismo da nossa época e a procura capitalista do sucesso, a morte pareceria o grande fracasso a que estamos condenados. Conviria sentar-nos a refletir sobre a própria morte?

Ao meu modo de ver, estamos a falar em realidade da questão central que sobrevoa o problema da eutanásia: como enfrentamos o facto de sermos mortais e limitadas. Quer dizer, o grande problema da humanidade e perante o qual temos imaginado e ideado todo o tipo de estratégias: culturais e nos últimos tempo científico-técnicas. É certo que a esperança de vida aumentou de um modo deslumbrante e que é muito possível que continue a crescer nos próximos anos -o qual, por sinal gera outro tipo de problemas sociais, económicos e ecológicos que exigem uma solução inteligente-, mas, como assinalas essa sorte de ditadura da juventude e do culto à beleza e ao aspecto físico, ligado à desgana por reflectir ao respeito da nossa própria condição e do modo em que evoluímos como pessoas, sobre que implica envelhecer e que impacto tem o facto mesmo de desaparecermos, impedem não só a aceitação do irreversível da morte, seja a de um mesmo ou seja a dos mais próximos e queridos, como também bloqueia o aparecimento de um debate sereno sobre os limites da própria vida, sobre a sua precariedade, de modo que nos vemos incapacitados emocional e intelectualmente para enfrentá-la, causando um profundo mal-estar e sofrimento. Acho que uma formação, uma pedagogia sobre algo tão básico como a certeza da morte, já desde a infância – pois parece que falar com sinceridade da morte com as crianças é de mau gosto, deixando-os indefesos emocionalmente perante uma experiência de morte-, nos permitiria assumir com maior integridade e consciência um aspeto essencial da nossa identidade, ademais de que nos ajudaria a nos conhecer muito melhor a nós mesmos.

Portugal acaba de ter o debate sobre a eutanásia. Irlanda enfrenta estes dias o referendo sobre o aborto. Estamos a viver o fim do estado dominado pela igreja? Achas que o estado espanhol é ainda um estado católico?

Quando debato sobre este tipo de questões com o meu estudantado, que oscila entre os 12 e os 18 anos, penso que não estão colonizadas mentalmente pelas ideias mais conservadoras e reacionárias do catolicismo; polo contrário, são abertos e tolerantes, e permeáveis à diferença. Essa impressão, de resto subjetiva, se afirma quando saem inquéritos sobre questões de carácter bioético ou relativas à ampliação de direitos, de que é um caso exemplar a questão sobre a eutanásia. É certo que depois essa mentalidade de abertura está subpresentada na política institucional, que tem a sua própria lógica e que dista de encarnar o sentir da maioria – daí que devamos ser tão críticos com o modelo democrático próprio do Estado espanhol-. Não custa muito imaginar a Igreja, em tanto que instituição, exercendo de lobbista e bloqueando o debate público e a despenalización da eutanásia – como sempre fixo no que diz respeito à ampliação dos direitos e liberdades cívicas-. Não obstante, a discussão está aberta como nos mostra o frutífero debate que se está a produzir em Portugal, onde não seria surpreendente que na presente legislatura se aprovasse uma legislação despenalizadora da eutanásia, o qual deveria impulsionar a discussão e aprovação também na Espanha.

A tendência geral é contemplar a filosofia como um saber académico e, às vezes, de tipo histórico (“assim dizia Platão”, “assim estabeleceu Kant”). No próximo ano letivo a filosofia recuperará alguns dos espaços que perdera nos últimos anos. Para além dos benefícios de oferecer os conhecimentos filosóficos como parte da formação do estudantado, poderias defender a necessidade duma “filosofia mundana”, no sentido dum gosto por refletir sobre as questões éticas, políticas ou existenciais? Dito doutra maneira, a filosofia pode ser, ainda, útil? Pode pôr-se ao serviço de problemas práticos e materiais das pessoas?

Uma das mais importantes tarefas que nos corresponde desenvolver aos que nos dedicamos à filosofia é evitar a clausura e o fechar-se em sim mesma, e é certo que em parte pela nossa própria incapacidade – o excessivo rigorismo, o academicismo, a falta de claridade, ou mesmo o desinteresse ante os problemas mais prementes e quotidianos da cidadania- e em parte devido ao próprio sino dos tempos – onde é difícil promover um debate sossegado e profundo sobre uma determinada temática quando o ritmo frenético da produção e do consumo exige resultados rápidos e tangíveis- provocou que muitas pessoas percebam a filosofia como um saber quer só próprio de iniciados, de forma que se sentem excluídos da atividade reflexiva e crítica, quer simplesmente obsoleta, como se já não tivesse nada interessante que dizer sobre os problemas “reais” próprios do contexto em que vivemos e que padecemos. Polo contrário, à filosofia como disciplina interrogativa por excelência, desconfiada, diria eu, deve abrir a porta a reflexão comum tanto sobre os problemas mais básicos ou triviais como ante os mais gerais e abstratos. Por isso, como assinalas, há que recuperar a ligação que sempre mantivo com os problemas existenciais e práticos, e ainda fazê-lo com uma linguagem acessível que todos podamos manejar, de modo que sirva como um referente útil não só para perceber a realidade como também para orientar-nos nela, e claro, eventualmente, também para a transformar-.