Susana Sanchez Arins: “Estou orgulhosa de que a Através já não seja o espaço único que nos resta às autoras reintegracionistas” 9 Novembro, 2018 – Publicado em: Através das Letras, Entrevistas

 

Susana S. Arins | Foto: Eduardo Castro Bal

Susana S. Arins | Foto: Eduardo Castro Bal

Susana S. Arins vem de publicar TU CONTAS E EU CONTO, um cuidado volume com 17 relatos e 17 poemas nos que conta sobre amizades que lastimam, sobre a memória dos tempos idos, sobre o nojo, o humor e a morte; sobre ocupar o tempo na precariedade, sobre voltar a casa sozinha, sobre o medo e sobre o assédio.

Com este motivo conversou com ela Teresa Crisanta, diretora da Através.

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Parece teres certa predileção pela combinatória de géneros, como já vimos com o seique. TU CONTAS EU CONTO é um livro que contém poesia e narrativa. Umas vezes parece que os poemas estão escritos para os contos e outras que é ao invés. Podes contar-nos um bocado sobre o processo criativo e a decisão de unires num mesmo texto diferentes géneros?

tucontas

Tu contas e eu conto – Capa de Leandro Lamas

Alguns dos poemas, como o de “política assistencial”, nasceram da estória que só depois decidi narrar em prosa, e pensei que deviam acompanhar-se, partilhar espaço, assim como mostra de respeito pola ideia primeira; depois nasceram estórias que eu não sabia se ficavam transparentes e pensei em colocar-lhe o poema para marcar aquilo que me interessava, ou oferecer outra visão do mesmo tema, ou mesmo contradizer o discurso dalguma personagem ou narradora. Em realidade, a medida que compunha o livro, vi que umas e outros pediam o acompanhamento: a estória, da síntese poética, o poema, duma estória que o estendesse.

E a cousa é sempre assim, não há vontade inicial minha de fazer cousas raras, juro, mas no processo de escrita encerelho-me, os textos tiram, eu puxo (“não, não, quero escrever normal, deixai-me, deixai-me!), e sempre acabam por ganhar-me a partida.

Formalmente o teu livro tem esse teu tom humorístico, ameno e mesmo oral. Porém, do ponto de vista do conteúdo impera a violência, que se manifesta de muitos jeitos (simbólica, institucional, machista…). É este um livro sobre a dor?

Não penso que seja um livro sobre a dor, mas sobre a vida. Eu pretendia escrever sobre o quotidiano, e foi no quotidiano que a violência entrou, entra. E quase sempre é essa a violência que fica sem narrar, porque as que interessam são as grandes, as maiúsculas, as públicas. E são estas privadas as que esquecemos porque não são contadas.

Acho que há muito humor nos textos, e que esse humor convive com situações de violência, mais ou menos brutal, mais ou menos subtil. Acho que assim são as nossas vidas. É com certeza o humor, junto com a tenrura (amor, diriam outras), o que faz que possamos erguer-nos, e continuarmos a ser pessoas, por cima dessa violência que sofremos ou presenciamos dia a dia. Isso é o que queria contar.

Embora encontremos textos ligados com o passado e com a memória (quem pode esquecer os seus mortos/passeados/fusilados/fundeados na ponta do furado), é TU CONTAS E EU CONTO, frente ao seique, um texto que tem como primeiro referente a situação atual?

Há ligação direta com a memória, só que neste caso a minha pessoal, a duma mulher na quarentena e não a de uma pessoa já idosa. Muitos dos contos nascem das minhas vivências de criança, deturpadas polo recordo.

Há só dous contos que podemos colocar noutras idades, e essa foi decerto a razão que me fez duvidar se inclui-los ou não nesta miscelânea (vou dar pistas à crítica para a derruba). Eu mesma visualizava o volume como presentivo, como atual. Depois pensei que o presente que escrevo é amplo e relativo, pois boto alguma estória acontecida quando eu era meninha (já no século passado,  como diz o meu alunado, contos de velhas) junto com outras situáveis nos violentos anos dez.

Ademais, algo que me confirmou a escrita do seique e os múltiplos encontros com as suas leitoras, é que não pode ser percebido este presente e boa parte das suas violências sem a lousa enorme que em nós deixou o golpe de estado, a repressão e os quarenta anos de ditadura. É intencionado colocar o conto da “ventureira borraja” por trás do da “democracia”, por exemplo. O primeiro é consequência do segundo.

Susana Sánchez Arins, poeta no milho

Ao ler “Cova de lobas”, conto em que se baseia o desenho da capa do Leandro Lamas, penso no derrubamento duma identidade roubada, no desamparo e na perda. Que é o que neste conto se nos rouba e como é que se configura a vida após a perda?

Esse conto nasceu como jogo (muita da minha escrita nasce assim, eu gozo e brinco quando escrevo): o repto era fazer narrativa histórica sem meter muito a soca e, ao mesmo tempo, questionar a invisibilidade das mulheres nas narrativas da História e nas suas interpretações. Na “Cova de lobas” há dous roubos, num primeiro plano às protagonistas: chegam os romanos e, não o conto, mas nós, contemporâneas, sabemos, acabam com a sua cultura. Mas em segundo plano, ou em primeiro, em realidade, há esse roubo ao qual somos submetidas as mulheres: o do nosso papel ativo na história. Sempre estamos ausentes nas narrativas e isso faz que acreditemos, as que chegamos dous milhares de anos depois, que somos as pioneiras, ou as únicas, ou que estamos sozinhas; e isso porque alguém se preocupa bem de tronçar os fios que nos ligam com aquelas do passado, que derruba a nossa gineologia. Este conto passadista liga bem com o titulado “Respect”, que coloco na contemporaneidade. Os dous falam da memória das mulheres e dos corpos das mulheres e da extirpação da nossa soberania sobre eles, sobre ela.

Após a perda? Acho que em realidade não há perda. Só desmemória. E quem aprende a olhar e ler com curiosidade, pode recuperar os elos e reconstruir a cadeia, ou mesmo construir uma cadeia nova, que já é muito. A mim pode-me o otimismo. Se não fosse assim, eu não poderia escrever dous milhares de anos depois, a estória verdadeira de Broa e a Loba de Malhou.

10 medidas susana

Numa entrevista de há dois anos dizes que tristemente tens como referente muitos escritorEs. Mudou isso desde que fazes parte da comunidade de crítica literária d’A Sega?

Pois! Mudar os nossos referentes é uma das cousas estupendas que traz tecermos rede. A verdade é que nos últimos anos quase todo o que li foram autorAs, não por negativa a ler homens, mas por desinteresse: caiam-me das mãos os livros deles e entusiasmavam-me as obras delas, por diferentes, alternativas, empáticas. Não teria escrito estes contos sem antes eu ler Alice Munro ou Lucia Berlin ou María Xosé Queizán ou Chimamanda Ngozi Adichie ou Luz Pichel ou Luisa Carnés ou Auđur Ava Ólafsdóttir ou Angela Carter ou Margaret Drabble ou Emma Pedreira ou Ana Pessoa ou… (continuo?). E parte destas autoras chegaram a mim através das segadoras, ou cheguei eu a elas alentada polas companheiras. Ademais, nessa rede somos todas de mundos diversos (estudos, profissões, referentes intelectuais, inquietudes) e oferecemo-nos sempre uma outra olhada sobre o que for. Estamos a reconstruir essa gineologia que nos foi arrebatada.

Essa ideia da artista solitária na sua torre de marfim não casa com o que eu vivo como autora. Acho-me parte duma coletividade que enriquece o meu trabalho, que seria bem mais pobre sem essa convivência.

Susana Arins entrevista Teresa Moure (fantasiada de Inessa Armand) durante o Culturgal 2015

Susana Arins entrevista Teresa Moure (fantasiada de Inessa Armand) durante o Culturgal 2015

Tenho entendido que tens outros projetos em processamento… Podias-nos adiantar alguma coisa?

Ai! Devo-me à discrição! Mas posso dizer que estou muito contente porque os dois mais imediatos tenho-os comprometidos com editoras que não são a Através. Quer dizer, estou orgulhosa de que a Através já não seja o espaço único que nos resta às autoras reintegracionistas. Que haja outras editoras que publiquem obras nossas sem comentar nada, por desnecessário, dos nossos nh. Sem sugerir a possibilidade, sequer, de mudar a ortografia. Encontro isso prova dum caminho, pode que lento, mas inexorável, para o binormativismo. E orgulha-me fazer parte.