Teresa Moure: “Sempre digo que não tenho vocação de linguista” 11 Junho, 2019 – Publicado em: Através da Língua, Entrevistas

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Valentim Fagim conversou com Teresa Moure, autora de Linguística eco-, o último fruto da Através Editora, um alimento incontornável para as pessoas que vêem as línguas para além da utilidade e que gostam de arranhar no espelho.

No prólogo do livro, da autoria de Moreno Cabrera, ele começa a indicar que a autora está comprometida com a defesa da diversidade linguística sem esta inclinação afetar a fotografia da realidade que mostra. Foi uma dificuldade transitar por essa aparente corda frouxa?

Sempre digo que não tenho vocação de linguista. Em absoluto. Foram uma série de circunstâncias curiosas e o acaso que puxaram de mim para estudar filologia. Depois, já cometido o pecado, só ficava a hipótese de me afastar da literatura: estava convicta de que queria escrever e, portanto, convinha extremar a cautela com a dissecção literária e dirigi os meus passos para a linguística geral. Nesse contexto, um bocadinho de rebeldia como ingrediente psicológico, um contexto nacional construído sobre a ferida e sobre a negação de nós e o clima na faculdade nos ’90, mais abertamente político do que o atual, tornaram-me em ativista. Não tenho que balançar-me na corda bamba; as tensões fazem parte de nós, mas sou mais ativista do que fotógrafa da realidade, seguindo a imagem de Juan Carlos Moreno Cabrera.

Tenho a fortuna, porém, de que no momento atual só seja possível fazer uma fotografia digna de ser considerada realista mostrando a crua realidade que o ativismo denuncia: padecemos uma devastadora perda da diversidade linguística e cultural. Hoje é aceite o cálculo que prognosticava Michael Krauss em 1992: para o fim do século XXI, 90% das línguas da humanidade terão desaparecido. Às vezes, no âmbito dos estudos de género, indico que não sou feminista como consequência de ter nascido mulher; quero acreditar que seria igualmente feminista encapsulada em qualquer outro tipo de corpo porque para mim se trata dum assunto ético. Da mesma maneira, não sou ativista ecológica e ecolinguística movida pelo único interesse de defender a minha língua (o qual, aliás, seria perfeitamente legítimo). Acho que todas as línguas são património cultural da humanidade e a sua perda faz com que o mundo seja um lugar menos criativo e interessante; um lugar que corre o risco de ser morada do pensamento único. As pessoas que são falantes de línguas não ameaçadas também devem comprometer-se com a defesa da diversidade; é urgente que o façam.

“Acho que todas as línguas são património cultural da humanidade e a sua perda faz com que o mundo seja um lugar menos criativo e interessante; um lugar que corre o risco de ser morada do pensamento único”

No livro desafias a pessoa leitora para tomar consciência da seu desempenho em geografia linguística. Somos assim tão eurocêntricas?

Acho que somos absolutamente eurocêntricas. Decidimos, por exemplo, estudar as línguas fortes dos estados próximos (inglês, francês, alemão ou italiano). Embora haja ascensões e descidas como resultado de modas, poucas vezes escolhemos línguas doutras áreas geográficas. Nas aulas peço ao estudantado para documentar as unidades ou fenómenos linguísticos que estuda em línguas não europeias porque, ao estudarmos línguas, tendemos a dar por universais os fonemas oclusivos, o género feminino ou os adjetivos qualificativos porque existem, precisamente, nas línguas europeias. Nisso não nos comportamos de maneira diferente do colonizador castelhano ou português do século XVI que, na versão erudita dos missionários, procurava as categorias do latim nas línguas aborígenes que aprendia com aquele esquisito objetivo de traduzir a Bíblia e fazer realidade o verdadeiro objetivo do imperialismo: colonizar mentalmente os povos ocupados. O corpus de dados da linguística geral ainda hoje não é ótimo. E se os fenómenos que consideramos universais só existissem nas línguas da Europa? A ideia de que o tempo é tripartito, por exemplo, materializado em passado, presente e futuro, à vista dos dados reais é bastante eurocêntrica, visto que nas famílias linguísticas não indo-europeias o tempo tem diferentes eixos ou mesmo é circular. Porém, esse suposto expande-se por via linguística e acaba assomando na filosofia ou na construção de hipóteses científicas; em lugares onde não era esperável.

“A ideia de que o tempo é tripartito, por exemplo, materializado em passado, presente e futuro, à vista dos dados reais é bastante eurocêntrica, visto que nas famílias linguísticas não indo-europeias o tempo tem diferentes eixos ou mesmo é circular”

Em geral, somos absolutamente eurocêntricas: temos referências claras para cidades, comidas ou símbolos culturais europeus e só numa ínfima medida para os doutras latitudes. Aliás, à medida que a globalização avança, incorporamos o outro sob a envoltura do “exótico”: viagens de turismo ao Japão, fajitas mexicanas ou pirâmides do Egito. Mas o exótico tem um ar burguês de distopia e discronia; não implica uma condição de igualdade entre os diversos espaços. Acho que continuamos temendo o outro. Doutra maneira não se explicaria que nos programas de história da arte ou de filosofia não apareçam as formas artísticas do Magrebe ou do Vietname, nem se formulem as grandes perguntas doutras civilizações, nem sejam citados pensador@s pret@s ou que escrevam em suaíli. Por acaso só interessam as catedrais ou as pinacotecas da Europa? Por acaso só o povo alemão e a Grécia clássica pensaram? Porque até poderia ser que também, como insinua com ironia Hamid Dabashi, os não europeus pensem.

A priori, o ensino secundário deveria ser um espaço para abordar preconceitos de todo o tipo: de género, étnicos, sociais… e por vezes estes são tratados curricularmente. Acontece o mesmo com a linguística?

Até onde eu sei, como mãe de estudantes de secundário, nem sequer os últimos materiais didáticos incluem realmente temas de linguística geral. Como toda afirmação, esta pode ser matizada e a inclinação duma parte ativa do professorado pode corrigir isto, mas não deixa de ser episódico. Acho que, em geral, as línguas são abordadas de maneira instrumental: aprendemos tal ou qual língua para nos comunicar através dela. A meu ver, seria interessante modificar alguns supostos.

Em primeiro lugar, boa parte dos debates da linguística contemporânea poderiam ser sugestivos e úteis no secundário: saber se a faculdade da linguagem é inata ou adquirida; conhecer as fases de aquisição infantil da língua materna ou debater até que ponto a nossa visão do mundo emana diretamente das convenções adotadas numa língua particular são questões sedutoras para aprimorar a capacidade do estudantado de construir argumentações consistentes.

Em segundo lugar, acho que esta ótica filosófica que desvincula as línguas da sua condição de instrumentos para o contacto contribui para a maturação intelectual duma maneira portentosa. Quando falo alemão devo indicar se um objeto está sobre a mesa de maneira horizontal, como estaria uma caneta, ou vertical, como uma garrafa. Não é possível falar bom alemão sem contar a posição exata do objeto. Para falar a nossa língua, no entanto, é desnecessário esse grau de precisão. Como consequência, não pensamos na colocação dos objetos sobre as mesas ao falarmos. Podemos fazer esta reflexão, como é óbvio, mas não é indispensável fazê-la. Imaginemos, portanto, as diferenças de visão do mundo que podem dar-se entre uma língua que favoreça a feminização da linguagem e as óticas inclusivas e outra que seja imune a estes movimentos sociais: produzirão tipos de sociedades diferentes, que idealizam de maneira diversa a discriminação por causa de género. As consequências de estudarmos a conexão entre língua e realidade compõem um dos problemas mais urgentes da humanidade, e um dos poucos que a linguística está chamada a resolver. Isso se não renunciar aos seus objetivos, porque existe como nunca o risco de construir uma linguística conformista, que só acumule dados, o que chamo frequentemente o panorama dos colecionadores de borboletas.

“As consequências de estudarmos a conexão entre língua e realidade compõem um dos problemas mais urgentes da humanidade, e um dos poucos que a linguística está chamada a resolver”

É frequente uma visão social dos idiomas como entes dissociados das pessoas e as sociedades que as falam, como se fossem coisas. De onde nasce esta perspetiva e aonde nos conduz?

Dissociar as línguas das sociedades é um método para abordar a linguagem absolutamente legítimo. Digamos que a linguagem é um prisma que se oferece à nossa observação e, se olhares para um objeto de essas caraterísticas, um objeto em 3D, por dizer de forma simples, nunca poderás ver todas as suas caras. A linguagem é duma tal complexidade que frequentemente temos que decidir metodologias para começar a perceber, mesmo sabendo que são parciais e limitadas. Um linguista tão eminente como Noam Chomsky olha para as línguas sem se interessar pelos aspetos sociais e isso não torna a sua obra menor. Em geral, a linguística do século XX praticou uma forte idealização do objeto de estudo. Era, insisto, um dos métodos possíveis e, à partida, positivo para reduzir a diversidade; doutro modo nunca sairíamos da armadilha feroz da dialetologia. Mas todas as idealizações correm o risco de construir edifícios tão perfeitos como desvinculados da realidade.

Dito o anterior, na Galiza experimentamos um forte pendor para a sociolinguística: a realidade lá está, a se impor sobre qualquer método: existe a exclusão por matéria linguística – e por causa ortográfica, até. Mas isso não significa que a sociolinguística seja a única aproximação. No meu caso formei-me num projeto em linguística computacional com uma base formal forte e escrevi a tese em epistemologia, quer dizer, em aspetos metodológicos e de teoria do conhecimento vinculados ao material linguístico. Dito em termos convencionais, adoro a sintaxe. Sei que pode parecer humorístico e que não está na moda, mas para mim a sintaxe é o centro dos estudos linguísticos. Daí as conexões entre diferentes perspetivas podem e devem ser múltiplas. Quando na tese construía uma hipótese universal para definir o complemento direto, trabalhava com línguas muito diversas – ameríndias, africanas, sino-tibetanas. O curioso é que, a partir desse material vi que era possível definir o objeto transitivo universalmente e que uma forma pouco analisada de complemento direto na nossa língua incluía “comer no caldo” como variante de “comer o caldo”. Ao dizermos “comer no caldo” não estamos a falar de lugar, segundo indicam as gramáticas (“comer no caldo” não é equivalente a “comer num sítio”; a preposição tem outro matiz). A estrutura com “em” introduz um valor aspetual: “comer no caldo” é provar, sem acabar o prato inteiro. Dentro da tipologia de complementos diretos raros figurava um especificamente galego. Se tudo correr bem, a ideia é: o galego não deve perder essa estrutura (descrita às vezes como residual nas gramáticas) porque deixaríamos de ter documentada uma dessas ricas variantes universais, que se repetem interlinguisticamente, de complemento direto. Uma ligação deste género entre aproximações sociologicamente informadas e aproximações formais é a ótica certa. Para descrevermos o prisma ao completo importa é termos investigador@s com imaginação, curiosidade e capacidade de transcender os limites que às vezes são dados às disciplinas. Penso, como Hockett, que a linguística sem esses ingredientes sociais é estéril e, igualmente, uma sociologia da linguagem sem o empirismo que proporcionam os dados gramaticais é cega.

linguistica eco capa

É um facto que cada ano morrem línguas, aliás, morrem antes do que a última pessoa falante. Ao mesmo tempo, o desejo e a necessidade de ter certos rudimentos de inglês crescem dia a dia. E a chuva cai dirão muitas… (é muito metafórico, ou não, mas o que quero perguntar é que isto é visto como “normal”. É normal? É incontornável).

Uma ativista sempre deve pensar que não é incontornável; doutra maneira não haveria um motivo para agir. As línguas morrem, isso é verdade. É verdade que o poder tem interesse em que isso suceda: as narrativas dos outros ameaçam o seu discurso, que alguns dirigentes internacionais elevam mesmo à condição de doutrina. É verdade também que a linguística, a ciência ocupada da linguagem humana, teve escasso interesse histórico na defesa da diversidade. É verdade que a opinião comum considera os idiomas como barreiras, não como tesouros. Porém, a verdade mais incómoda de todas é que as línguas morrem porque os seus falantes deixam de as falar; que existe uma responsabilidade individual que não pode ser minimizada. Muitas línguas ameríndias, por exemplo, já têm desaparecido e só agora estão a ser reintroduzidas numa população que se lembra tardiamente que deseja manter o contacto com o seu passado ancestral. Temos um problema grave, semelhante ao da perda da diversidade ecológica. Restaurar para o planeta a diversidade que podia existir em 1800, por exemplo, é impossível, em termos biológicos ou linguísticos. Só podemos deter o processo de perda atual e nem sequer temos demasiado tempo. Por isso a ecolinguística deve ser divulgada como programa de investigação e como pratica civil. O curioso em tudo isto, a meu ver, é o mito que sustenta o inglês. Todo o pessoal tem realmente tanta necessidade de inglês? Alguém pode acreditar hoje que @s noss@s filh@s precisam de inglês para obter um posto de trabalho? Nalgum momento, a equação funcionava porque eram uma elite as pessoas que dominavam o inglês em estados de fala não inglesa. Hoje, se quisermos ser extremamente utilitaristas, deveríamos solicitar do modelo educativo outras propostas. Há alguns anos escrevi sobre isso num ensaio intitulado Outro idioma é possível.

Por exemplo, para mentes pragmáticas, línguas como o bengali, o hindi, o urdu estão entre as mais faladas do mundo em milhões de falantes. Uma tradutora poderia ganhar a vida na Galiza ou em Portugal com um bom conhecimento escrito dessas línguas porque, de facto, em ocidente não existem assim tantos peritos. Mas, em conjunto, eu preferiria que o modelo educativo visasse conseguir um eco-multilinguismo: um conhecimento de muitas línguas, embora fosse de pouca profundidade. Por exemplo, um falante da nossa língua pode conseguir com um par de cursos específicos, um alto grão de intercompreensão com todas as línguas românicas, quer dizer, investindo um número de horas de estudo bastante inferior ao que colocamos no inglês, podemos saber português, espanhol, catalão, italiano, romeno e francês. Esse trabalho por grandes áreas linguísticas é urgente e útil. Um programa educativo ecolinguístico contemplaria, finalmente, a hipótese de estudarmos as línguas das populações migrantes. Numa localidade como Ribeira, na Galiza, o número de residentes procedentes de Marrocos convidaria a introduzir entre a população local programas de aprendizagem de árabe marroquino; isso aumentaria o bem-estar e a coesão social. Plurilinguismo não significa necessariamente aprender inglês e, sobretudo, não deve significar aceitar a globalização capitalista. Atender o local e daí transformar a realidade pode ser uma chave interessante e, além do mais, ecológica e linguisticamente motivada.

Que dirias a uma pessoa que pega neste livro numa livraria ou observa a descrição numa loja online para a encorajares a o ler?

Se te dissessem que o planeta que habitas está a experimentar uma perda radical, se te dissessem que toda a diversidade conhecida está a desaparecer, tu estarias com vontades de fazer o quê? Lembra que um povo deixa de estar vivo quando as palavras não parem palavras, mas se devoram entre si.

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