Teresa Moure: “Não pretendo diferenciar-me da literatura atual. Pretendo é diferenciar-me de mim própria” 29 Dezembro, 2020 – Publicado em: Através da Língua, Entrevistas – Tags:

Já nas livrarias o último romance de Teresa Moure, A tribo que conserva o lume, o primeiro livro que publica após fechar o ciclo que começou com Um elefante no armário e concluiu com Sopas New Campbell, editado en Cuarto de Inverno. Lia e Marlene começam cada uma uma investigação após a morte de Thomas Dinger, linguista especializado no idioma potawátomi, e outros linguistas ao redor do mundo. Conversamos com ela relativamente à sua novidade editorial.

Quase todas as autoras, por não dizer todas, são lidas em chave autobiográfica. No teu caso, tenho a sensação de que ao seres feminista a tua obra literária também é lida nessas coordenadas. No entanto, eu não utilizaria tão rapidamente a etiqueta lilás nos teus textos, nomeadamente nos mais recentes. Como vês tu a tua própria produção dos últimos anos (Um elefante no armário, Sopas New Campbell, A tribo que conserva o lume) relativamente ao feminismo?

Sempre digo que não escrevo a minha autobiografia. Embora a subjetividade e a mochila própria tenham que estar necessariamente no que escrevemos, detesto esse problema que ainda temos as mulheres na literatura de sermos interpretadas em chave autobiográfica, como bem dizes. Essa distinção entre o eu que sou e o trabalho criativo que quero fazer para mim é importante e imagino que está relacionada com a que chamas etiqueta lilás. Eu não pretendo nunca, nem sequer nas obras que são qualificadas pela crítica como feministas, fazer manuais de combate. A meu ver, para isso está o ensaio; para isso estão as ruas ou os espaços de militância. O romance é um território delicado: se colocares demasiada “teoria”, corres o risco de cair na literatura doutrinária. Mas também é um mecanismo muito sensível, no sentido de provocar emoções e suspeitas ─e, portanto, onde também fazemos ação feminista─. Simplesmente a criação não se leva bem com a exposição de razões dum ideário.

Eu não pretendo nunca, nem sequer nas obras que são qualificadas pela crítica como feministas, fazer manuais de combate. A meu ver, para isso está o ensaio; para isso estão as ruas ou os espaços de militância.

A ideologia estará, porque não renego dela em absoluto, mas duma maneira latente; observa-se na escolha de personagens ou nos seus perfis psicológicos, mas não é preciso ajustar-se a temas da agenda feminista. Às vezes, de facto, quando uma disciplina começa a incorporar mulheres, quando se feminiza, parece que as mulheres têm de estar só para falarem de si próprias. Se, por exemplo, pensamos numa filosofia feminista, pensamos em autoras que tenham falado da condição feminina, como Simone de Beauvoir, muito menos naquelas que falaram noutros temas, como Hannah Arendt. Penso que o exemplo também se pode levar à literatura: não é obrigado circunscrever-se a uns assuntos, que seria condenar-nos a só sermos especialistas em nós próprias. Gosto de escrever; sou feminista e gosto de escrever sobre jardins, sobre o bem e o mal e sobre o que me faz rir. Espero não ser considerada por isso menos feminista.

Dizes numa entrevista que com Sopas New Campbell (Cuarto de inverno) fechas o ciclo da culpa. Porém, este teu último romance, A tribo que conserva o lume, tem como pano de fundo as línguas minoritárias e a responsabilidade que as sociedades têm na sua desaparição. Como professora de sociolinguística e tipologia linguística, entre outras matérias, és muito séria, direita e contundente com a questão das obrigas dos indivíduos, dos povos e dos governos no que diz respeito aos idiomas. Será que não concluiu o ciclo da culpa?
Ah! ah! ah! … Talvez o que fechasse então fosse simplesmente a metáfora do elefante. A culpa é sempre um grande tema, com muitas referências filosóficas à volta. Não me apercebera ainda de que estava por trás desta incursão pseudopolicial no tema das línguas menorizadas. Seguramente todas as pessoas que assumimos o compromisso de fidelidade com uma tribo, com os vínculos ancestrais, pensamos que as línguas estão em perigo e que salvá-las é a nossa responsabilidade. Reagimos contra uma hipotética culpa futura: adiantamo-nos à hipótese de que as gerações que estão por vir venham a pedir-nos explicações. Porém, isto torna-nos tremendamente contundentes. Talvez em excesso. E se as nossas filhas passassem no futuro a falar com a sua prole na língua dominante? O que faríamos? Conservar o nosso critério ou mudá-lo? Conservá-lo tem todos o perigos dos posicionamentos taxativos, mas mudá-lo implica também a culpa, visto que implica reconhecer ter sido excessivamente rígidas. Talvez ninguém escape das culpas, nunca. E assim regresso para o meu elefante mais uma vez. Como dizíamos antes, não escrevemos a nossa biografia, mas o nosso subconsciente escreve quem somos e em boa medida também, e isto é muito interessante, escreve por nós.

E se as nossas filhas passassem no futuro a falar com a sua prole na língua dominante? O que faríamos? Conservar o nosso critério ou mudá-lo? Conservá-lo tem todos o perigos dos posicionamentos taxativos, mas mudá-lo implica também a culpa, visto que implica reconhecer ter sido excessivamente rígidas.

É frequente, por causa da tua formação, que nos teus livros haja alguma referência linguística, como quando em Um elefante no armário explicas que em holandês a palavra culpa também significa dívida. Mas é agora que publicas um texto onde o linguístico é transversal e constante, havendo mesmo fragmentos próprios dum ensaio de tipologia linguística. Porque agora?
Nem faço ideia. Olha, eu sempre digo que não sou uma linguista vocacional. Tenho muito mais interesse por questões filosóficas do que filológicas e penso que a maioria das referências linguísticas que uso, se não, todas têm essa filiação: um gosto poético pela densidade do significado. Há anos que me rondava a ideia de escrever um romance no cenário do ativismo antropológico e agora chegou. Muitas das ideias que eu vejo cada dia no meu gabinete na universidade são controversas, fomentam atitudes críticas e têm um vago ar conspirativo; isso é material literaturizável. Que o povo galego esteja a comportar-se como tantos povos indígenas é um facto constatado, que muitas das pessoas que nos comprometemos em defesa da língua sejamos doídas é evidente, visto que decidimos perder vantagens. Interessa-me essa encruzilhada de caminhos inspiradores, mas sempre é difícil responder ao porque agora… Talvez o mais sincero seja dizer que neste agora que estamos a viver só fica escaparmos para algures, preferivelmente para espaços exóticos e longínquos; outra maneira de viajar.

Que o povo galego esteja a comportar-se como tantos povos indígenas é um facto constatado, que muitas das pessoas que nos comprometemos em defesa da língua sejamos doídas é evidente, visto que decidimos perder vantagens.

cp_38_atriboqueconservaolume_9788416545490Uma idosa que acumula lixo como protesta, uma exterminadora de elefantes, uma filósofa que põe a prova as suas amizades, um complot linguístico onde intervém o FBI… Os temas dos teus livros não estão dentro das linhas imperantes da literatura galega atual. Procuras uma linha diferenciadora ou não gostas das tendências atuais?
Muit@s escritor@s passam a vida a escrever o mesmo livro. Encontram um tema do seu interesse e desenvolvem-no muitas vezes, com ligeiras variações. Porém, para apresentar-se perante o público importa jogar com a criatividade; afinal somos criador@s. A literatura adora o novo e o não trivial: eis onde pode ser medida a qualidade duma obra, a meu ver, e não no virtuosismo formal ou no sucesso editorial. Não pretendo diferenciar-me das linhas da literatura galega atual voluntariamente. Pretendo é diferenciar-me de mim própria. Aliás, sempre há recorrências. A tribo que conserva o lume tem personagens atípicas e idealistas, que se veem envolvidas pelo acaso numa série de acontecimentos imprevistos, nesse barulho de diversidade que é a vida, e nunca acedem à totalidade da informação. Isso lembra muito o cenário do grupo de artistas que faziam ativismo ecológico no Courel num romance que publiquei em 2008. Quero dizer que as obsessões próprias, o pulso na maneira de contar é o que dá unidade a cada uma das entregas, a cada livro. Mas os livros têm que ser diferentes, até porque eu não sou a mesma que era há um ano. Escrever exige reinventar-se; diferenciar-se no possível do escrito antes.

 

 

[Esta entrevista foi publicada originariamente no PGL]