Afonso Becerra: “descobri que havia toda uma imensa e rica história da dança oculta e totalmente desconhecida na Galiza” 14 Junho, 2021 – Publicado em: Através de Nós, Entrevistas – Tags: Beatriz Busto Miramontes
Daniel Amarelo Montero entrevista Afonso Becerra de Becerreá, dramaturgo e professor na ESAD da Galiza, em Vigo. Da sua autoria é o último livro da Através Editora, História da Dança Contemporânea na Galiza, que conta com o apoio da AGADIC, da Deputação de Lugo e do Concelho de Santiago de Compostela.
Daniel (E): Existem várias histórias da literatura, mesmo contamos com várias publicações sobre a história do teatro galego, mas tivemos que esperar até 2021 para poder usufruir de uma história da dança na Galiza. Quais foram as tuas principais motivações para escrever esta obra e aumentá-la progressivamente? Que nos oferece o livro ao público leitor e à cultura galega atual em geral, neste momento de crise social, cultural e económica?
Afonso (A): A primeira motivação é de natureza amorosa e afetiva, relativa a atração que de sempre suscitam em mim as artes do movimento e a dança. O facto de situar o corpo como sujeito e, ao mesmo tempo, objeto artístico, com todas as suas camadas de mistério e significação sensual. O jogo que a dança nos propõe através do movimento do corpo, até na sua quietude, e o desafio que coloca para quem tenta descrever, analisar ou contar a dança. Esta foi a minha primeira motivação que me levou a escrever sobre peças de dança desde há uns vinte anos.
A segunda motivação foi quando Carmen Giménez Morte, professora do Conservatório Superior de Dança de Valência, pertencente à Academia das Artes Cénicas de Espanha, decidiu, com o respaldo da Academia, publicar a primeira história da dança contemporânea da Espanha. Ela ligou para mim para pedir-me que me ocupasse dos capítulos sobre a Galiza. Esses capítulos são necessariamente breves por estarem inseridos em volumes que atendem a todas as comunidades autónomas do Estado. Além disso, também estabelecem uma espécie de hierarquia, segundo a qual Madrid, Catalunha e Valência têm mais peso e maior extensão em páginas. Ora, quando eu comecei a pesquisar, descobri que havia toda uma imensa e rica história da dança oculta e totalmente desconhecida na Galiza. Descobri que a história da dança na Galiza não é de menor nível do que a história da dança noutros lugares, apesar de um contexto muito mais adverso do que noutros lugares como a Catalunha ou Madrid. Portanto, a constatação desta injustiça fez que redobrasse os esforços para levar adiante este livro, para visibilizar uma das manifestações artísticas fundamentais da cultura de qualquer país, que no nosso estava discriminada.
quando eu comecei a pesquisar, descobri que havia toda uma imensa e rica história da dança oculta e totalmente desconhecida na Galiza. Descobri que a história da dança na Galiza não é de menor nível do que a história da dança noutros lugares, apesar de um contexto muito mais adverso do que noutros lugares como a Catalunha ou Madrid.
Relativamente ao que oferece este livro ao público leitor e à cultura galega em geral, neste momento, há vários aspetos. Se calhar, o primeiro é a consciência de que temos uma arte que não pode continuar a ser desconhecida para qualquer pessoa que se considere culta. A consciência de que não existe uma cultura plena sem a atenção ao “discurso” dos corpos, à arte da dança.
Esta é a primeira história da dança da Galiza, portanto, o livro tenta oferecer um relato-mapa do nascimento e eclosão da dança contemporânea (aquela na qual a criação de movimento é maior) sem estabelecer hierarquias. Tentei que todas as coreógrafas e coreógrafos estivessem. Também tentei que não fosse um livro só de informação e dados, mas também sobre a arte da dança, os estilos e as questões que pode levantar.
Neste momento de crise, a história da dança na Galiza, ensina-nos a resistir e a que não há sonhos que não possam ser cumpridos, se o amor e o empenho estiverem à sua altura.
E: Em que estado se acha a dança feita na Galiza atualmente? Como se costuma dizer, “qualquer tempo passado foi melhor”, ou, contrariamente, fomos aprendendo dos erros e episódios do passado?
A: Na dança galega há meio cento de criadoras/es, sobretudo mulheres. Há uma grande diversidade de estilos e tendências. Começam a conviver coreógrafas de diferentes gerações, desde Amparo Martínez Paz, que foi a primeira selecionada para o primeiro Certame Coreográfico de Madrid (se calhar o festival mais significativo do Estado) em inícios dos anos 80, até Xián Martínez Miguel, um coreógrafo de 24 anos, que acabou em 2020 no Conservatório Superior de Dança de Madrid (na Galiza não temos Conservatório Superior de Dança). Como me comentava Matias Daporta, também coreógrafo, na Galiza podem observar-se duas grandes tendências no contemporâneo, por um lado um estilo mais conceitual focado no próprio movimento, como podem ser as peças do Coletivo Glovo de Lugo, formado por Ester Latorre e Hugo Pereira, e, por outro lado, a dança mais acrobática e circense, que liga esta arte com os aéreos, da qual o exemplo mais claro é o Coletivo Verticália, formado por Paula Quintas, Marta Alonso Tejada e Raquel Oitavén. Mas eu também acrescentaria uma outra linha sinuosa de dança-teatro, na qual se inscrevem a maior parte das criadoras e criadores. E ainda uma quarta linha de atualização e releitura contemporânea do tradicional. Eis os trabalhos de Nova Galega de Dança (o mais recente, intitulado Leira, é a imagem da capa do livro) ou os de uma companhia muito mais recente e que não sai no livro, mas que também devemos considerar, como é a de Fran Sieira, além do importante labor nesse campo por parte da companhia de Quique Peón.
Além da questão artística, muito diversa e rica em propostas e estilos muito singulares, a dança continua numa situação económica muito precária (relativamente às ajudas públicas e privadas e à programação nos teatros). Trata-se, dentro das artes cénicas, da mais marginada na Galiza.
Além da questão artística, muito diversa e rica em propostas e estilos muito singulares, a dança continua numa situação económica muito precária (relativamente às ajudas públicas e privadas e à programação nos teatros). Trata-se, dentro das artes cénicas, da mais marginada na Galiza.
E: Comentas no teu estudo que a época dourada da dança na Galiza foi entre 2005 e 2009. Porém, a partir de 2009 parece produzir-se uma certa efervescência criativa, marcada pola fertilidade e a resistência. Que relação se dá entre poder político e criação dancística?
A: Entre 2005 e 2009 coincidem muitas circunstâncias favoráveis para a dança na Galiza, embora não suficientes e sempre menores e assimétricas no que diz respeito ao teatro, no qual há palavra e a palavra já sabemos que é Deus. Os corpos são demasiado reais, sensuais e prementes para uma sociedade de tradição judeu-cristã como a nossa, que prefere o conto e a fabulação verbal (ilustrada ou representada nos palcos).
Entre 2005 e 2009 coincidem o Teatro Galán, a Sala Nasa e o festival Em Pé de Pedra, na capital, o Teatro Ensalle de Vigo, o festival ALT de Vigo, o Primavera em Dança de Carbalho e o máximo esplendor no nascimento do Centro Coreográfico Galego, da Xunta da Galiza, sob a coordenação de Natália Balseiro. Depois vem a crise económica e os recortes brutais em cultura, o encerramento das salas compostelanas que foram berço da dança contemporânea, o final dos festivais Em Pé de Pedra e o ALT, etc. Mas tudo aquilo deu um impulso inapelável e gerou uma força e um conhecimento que já não podiam regredir. A última década, de 2010 a 2020, é filha desses anos esplendorosos anteriores.
A relação entre a criação dancística e o poder político é difícil. O sector da dança necessita fazer muita pedagogia e muito esforço para arrecadar a percentagem mais baixa das ajudas e dos espaços. Mas, pouco a pouco, acho que as coisas estão a mudar. Há diferentes plataformas nas quais o sector se organiza e abre possibilidades. Também a publicação desta História da dança contemporânea na Galiza, apoiada pela AGADIC, pela Deputação de Lugo (onde está o Conservatório Profissional de Dança da Xunta e de onde sou eu) e pelo Concelho de Santiago de Compostela, é uma mostra de um caminho de mudança esperançado.
E: Sendo a dança um campo artístico periférico e, em muitos casos, experimental, como valorizas o seu grau de institucionalização?
A: A perceção de que a dança é um campo artístico periférico dá-se cá na Galiza. Em Portugal ou na França não é assim. Trata-se, portanto, de uma perceção derivada de uma injusta subestimação devida a um desconhecimento e a uma falta de relação entre os diferentes âmbitos culturais.
A ideia do experimental também acho que deriva do preconceito de que a dança não se compreende do mesmo jeito do que a literatura ou o teatro. Pensamos em algo experimental para um público restrito e especializado, quando todas as artes, no seu processo de criação, necessitam da experimentação e da investigação para não se repetir ou ficar estagnadas e esgotadas. Portanto, uma boa peça de dança é tão experimental como pode ser um bom romance ou uma boa peça de teatro.
No que diz respeito ao grau de institucionalização da dança é muito baixo e deve-se, também, a esta série de perceções, além de questões relativas ao prestígio da palavra e das artes que se focam na palavra, frente às artes efémeras que se focam nos corpos.
E: Por último, para quem estiver a pensar nas vontades de conseguir já o livro e devorá-lo, é preciso indicar que seguiste na sua confeção um processo um bocado atípico nas aproximações históricas… No livro, achegas-te com um certo olhar antropológico e muito humano aes bailarines reais e encarnades que estão por trás das peças, com atenção às suas pessoas e produções. Por que seguiste este procedimento e como pensas que pode ajudar a aproximarmo-nos das indústrias culturais na contemporaneidade?
A: Como assinalei antes, na dança, o sujeito e o objeto artísticos são a mesma coisa, a realidade das pessoas e dos corpos em movimento entra na arte, a partir da concretização, a materialidade, a sensualidade, etc. Portanto, além de documentar-me com artigos, fotografias, gravações audiovisuais, assistência a espetáculos… necessitava falar diretamente com essas pessoas que decidem dedicar a sua vida à dança. Fazer um exercício de compreensão. Necessitava tentar dar-lhes voz, na medida das minhas possibilidades. Elas e eles sabem muito mais do que eu sobre dança e, além disso, há uma questão existencial importante que seria injusto deixar fora do livro.
Afinal, espero, também, que este livro deite luz sobre nós, como povo, porque não há povo sem dança e porque a dança também reflete o que é Galiza, no caso de que Galiza seja alguma coisa.
Entrevista de Daniel Amarelo Montero.
[Esta entrevista foi publicada originariamente no PGL]