Isabel Rei: “Desenvolveu-se a ideia da ‘guitarra espanhola’ apesar de na Galiza termos história do seu uso desde o século XII” 29 Setembro, 2021 – Publicado em: Alicerces, Entrevistas – Tags: ,

Com a sua tese de doutoramento ‘A guitarra na Galiza’ Isabel Rei Samartim expom o produto de anos de investigaçom: um alargado leque de documentos que mostram a tradiçom do uso deste instrumento no nosso país até o século XIX. Ademais da tese, Rei Samartim publicou na editorial Através ‘Guitarra Galega. Breve História da viola (violão) na Galiza’, onde divulga as ideias fundamentais da tese e acrescenta um breve capítulo sobre o século XX, época que a autora continua a investigar.

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Ena Barbazán

Um dos motivos destes trabalhos foi reconhecer a existência do uso da guitarra na Galiza. Entendo que era algo que já percebias previamente, mas quais fôrom essas intuiçons e como foi unir os cabos soltos? 

Começou todo no ano 2000, quando trabalhava em Cangas do Morraço. Véu um senhor pola Escola de Música, que resultou ser o professor da Universidade de Vigo Iago Santos Castroviejo, que me dixo que se anotara na Escola para aprender a tocar na guitarra as peças do seu pai. A primeira pregunta foi: ‘E quem é o teu pai? Tem peças compostas para guitarra?’ E assim era. Intuim a partir de aí e mais da base de que meu irmao era guitarrista cantautor e que tinha outros amigos que também eram guitarristas. Ao dia seguinte, vem Iago Santos Castroviejo com umha partitura familiar de 6 peças do seu pai. Eram espetaculares e digem-lhe que ia estudá-las. Figem umha entrevista ao pai, Luis Eugenio Santos Sequeiros. Agora acabo de gravar um disco no mês de maio que conta com duas peças dele.

Em 2006 chegou José Luis do Pico Orjais, reintegracionista e musicólogo, e dixo-me que na Estrada a família Valadares tinha música. Fomos ali e encontramos a coleçom de música desta família. É umha das maiores coleçons de música que temos na Galiza. Som quase 700 obras para vários instrumentos. Para guitarra som 131 e o resto para piano, flauta, violino, canto…  No 2006 já foi o empurrom forte. Em 2000 suspeitava, em 2006 já fum orientada e logo a tese matriculei-na no 2013. Som uns 20 anos. É todo um processo vital, eu aprendim muitíssimo fazendo isto.

Apontas que em finais do século XIX é quando se constrói o conceito de ‘guitarra espanhola’ e que isto apagou a guitarra galega.

É entom que começa a introduzir-se essa ideia da ‘guitarra espanhola’ porque começam a construir a Espanha como naçom única. E a propaganda tivo sucesso, entom o pessoal começou a desenvolver a ideia da ‘guitarra espanhola’ apesar de ter história de uso de guitarras desde o século XII. Havia muitíssimos homens e mulheres tocando guitarra no século XIX na Galiza. E já na segunda metade deste século estám por toda a parte. É o ‘boom’ das orquestras de guitarras no último terço. Está a tocar-se a guitarra por todo o país mas a ideia da ‘guitarra espanhola’ adquire essa relevância e, sobre todo ao longo do século XX, produze-se esse alheamento: se é um instrumento espanhol já nom é galego e nom se toca com ele música galega. Como se nom houvesse também guitarra na França, na Alemanha, na Inglaterra ou na Itália! Ou mesmo em Portugal, onde conservam as diferentes formas e tamanhos das violas, associadas à música popular. Precisamente, mais populares nom podem ser.

Em Portugal conservam as diferentes formas e tamanhos das violas que havia no século XIX, associadas à música popular. Precisamente, mais populares nom podem ser.

Ainda assim, existe certa vinculaçom entre a guitarra e o galeguismo, nom é? 

Sim, com Rosalia e Curros Enríquez, por exemplo. Foi o guitarrista Cesáreo Alonso Salgado que fijo a peça de ‘Cántiga’, o famoso poema de Curros. Conta Curros que eles dous estavam em Madrid no quarto onde durmiam quando estudavam Direito. Entom Cesáreo Alonso Salgado, que era de Trives, tocava umha moinheira na sua guitarra e Curros gostou tanto que o inspirou e fijo o poema. Fai-se essa cançom e chega a Ourense, onde se populariza e muda o primeiro verso. Logo chega Curros a Ourense escuta‑a e di que nom é o seu poema, que nom é ‘umha noite na eira do trigo’ senom ‘no jardim umha noite sentada’. Curros enfadou-se

Também ‘Chané’ foi um ícone galeguista, ainda que nom se mostrasse como nacionalista nom tinha nengum inconveniente em fazer a música mais galega que conseguisse fazer.

Outra vinculaçom do século XX é ‘A Rianxeira’. Foi composta por dous rianxeiros em Buenos Aires para a chegada de Castelao. Quando Castelao chegou exiliado é recebido com esta cançom, que tinha umha letra diferente da que a gente canta agora. Aí o franquismo atuou ao ver que se popularizava. Foi gravada com umha orquestra de guitarras de Buenos Aires, formada por gentes galegas num centro galego.

Avelina Valadares é umha autora que nom está mui considerada mas é umha poeta galeguista, que escreveu em castelhano mas também em galego. Com ‘g’ e ‘j’, como era a proposta do seu irmao, Marcial Valadares. E mesmo Castelao tocava a guitarra.

Avelina Valadares é umha autora que nom está mui considerada mas é umha poeta galeguista, que escreveu em castelhano mas também em galego. Com ‘g’ e ‘j’, como era a proposta do seu irmao, Marcial Valadares. E mesmo Castelao tocava a guitarra.

Como é a presença da mulher neste instrumento? 

Figura de mulher com guitarra. peça do século XVI colocada na fachada da igreja de Santiago do Deão, na Póvoa do Caraminhal, junto outra figura de um homem a tocar um instrumento de sopro (isabel rei samartim)

Figura de mulher com guitarra. peça do século XVI colocada na fachada da igreja de Santiago do Deão, na Póvoa do Caraminhal, junto outra figura de um homem a tocar um instrumento de sopro (isabel rei samartim)

Temos talhas em pedra duas mulheres guitarristas fantásticas, umha do século XVI e outra do XVIII. Em Lisboa sabem que as mulheres do século XV ajudavam os seus maridos que eram construtores de guitarra. Elas faziam as cordas. Havia umha divisom do trabalho, mas trabalhavam nas construçom das guitarras e é mui estranho trabalhar na construçom de guitarras e nom saber tocar algo. Aqui nom sabemos ainda se houvo isso.Também as prostitutas. Há vários documentos notariais de pleitos por guitarras e às vezes as guitarras perdem-se nos prostíbulos. Há algumha moça que fica com a guitarra. Nom ficas com umha guitarra se nom é para vendé-la, porque achas valiossíssima, ou porque sabes tocar. De mulheres prostitutas que tocam a guitarra na Catalunha sabem desde o século XIV. E temos a Maria Balteira, em Betanços no século XIII. Nom há documentos que testemunhem que tocasse a viola de mao, mas era o instrumento que tocavam na época.

Avelina Valadares, no século XIX, que é importante porque tem a primeira obra, ou obra mais antiga que conhecemos, escrita para guitarra por umha mulher galega, no século XIX foi ela que a deixou escrita. Também escreveu para piano. Está também Rosalia, e Paz Armesto de Quiroga, que foi umha guitarrista que depois marchou para Barcelona.

No século XX há algumha moça que nom se sabe quem é, de vila, que acompanhava. Logo gente mais conhecida que publicou algo de música, Concha Plantón Meilán, de Lugo. Dela também gravei umha peça.

Há guitarristas como para dizer que nom era um instrumento exclusivamente de homens, mas o mundo patriarcal pesa muito.

Há guitarristas como para dizer que nom era um instrumento exclusivamente de homens, mas o mundo patriarcal pesa muito. Está o exemplo de Miss Zaida, que nom era galega mas tocou aqui muito. Semelha ser que era de Logronho e é umha das artistas de finais do século XIX, que é quando começa a despontar a mulher como artista. Ela era umha virtuosa da bandurria e vaia comentários saiam às vezes nos jornais. Umha figura como essa na Galiza nom a encontrei ainda.

Quais som as linhas de trabalho que vás seguir para estudar a guitarra galega do século XX?

Descobrir o que aconteceu exatamente com a reduçom da variedade de instrumentos própria do XIX. Também analisar a falta de criatividade musical que se aprecia a partir da pós-guerra, pois só seguem a tocar-se as mesmas quatro ou cinco peças dos mesmos músicos do século XIX: Montes, ‘Chané’ e Veiga.

Também continuar perseguindo como se construiu historiograficamente a ‘guitarra espanhola’ e como puido afetar. Ainda que penso que durante o franquismo o que mais afeta é a situaçom política. Nom podes pensar pola tua conta, nem fazer cousas galegas.

E da folclorizaçom da música galega também se encarregou o franquismo. Há muitos detalhes que fôrom criados durante a primeira etapa do franquismo. Pugerom-se à tarefa de nós construir, folclorizar e reduzir. Assim, as linhas som analisar o que aconteceu aí, e também ver a música de autoria galega que temos, que é bastante.

[Esta entrevista foi publicada originariamente no Novas da Galiza]

Entrevista de Aarón L. Rivas, nascido em Bueu, em 1986. Licenciado em jornalismo pola USC, forma parte do Conselho de Redaçom de ‘Novas da Galiza’ e desenvolve esta atividade num contexto de precariedade laboral, desemprego e trabalhos temporais.