Mário Herrero Valeiro: “A devastação é também um mercado” 30 Março, 2022 – Publicado em: Através das Letras, Entrevistas – Tags: Mário Herrero Valeiro
Mário J. Herrero Valeiro traz-nos nova colheita depois de “Fé do Converso” editado também pela Através Editora em 2019. Em “Ética do Abandono” o poeta revela-nos imagens talhadas com a precisão de quem conhece o inferno humano e o integra perfeitamente na realidade, ou, na verdade, do poema. É uma espécie de panorâmica pensante e viva, um lugar que recebe e incarna o acontecimento. Cada poema é um artefacto que está talhado para nos seduzir, erigindo-se sob a fenda tectónica onde hoje nos encontramos desabitados ou abandonados e que nos junta na nossa dor, no nosso sonho, no nosso pessoalíssimo modo de encarar a morte, e sopra-nos ao ouvido com a mesma faúlha, a mesma réstia de fogo.
Mário, começo pelo início, pelo capítulo “e só é fevereiro”, onde topamos com corpos vazios, a doença, a morte, um retrato de um pai e filho, também Rimbaud, Panero, Pizarnik. É a meu ver uma espécie de sismógrafo de onde extrais a mais elementar existência. Podes contar-nos que relação tens com estes poemas em concreto e como surgiram?
Um leitor perguntou-me se este livro era distopia ou realidade. Eu sempre escrevo realidade. Sou incapaz de inventar. Ficcionista fracassado. E, neste caso, não pode haver realidade mais crua, pura e nua. Realismo existencialista, como quase sempre, ou tentar regressar tangencialmente ao neorrealismo, às ruas em que cresci, formando-me na fraqueza e na resistência, na cobardia, na agonia, até construir esta fraca saúde mental de ferro enferrujado. É uma breve narração de um mês e meio de agonia que tenta combinar a extrema contenção formal com uma concessão ao excesso metaliterário, para quebrar dinâmicas que se tornam estáticas (uma estratégia que tento utilizar sempre nos meus livros). É simplesmente mais um conto sobre a morte, neste caso a morte de uma pessoa que não fez nada bom na sua vida. Que não conheceu amor nem piedade. Para mim, é apenas um relato catártico, um breve exorcismo. A mais elementar existência, sim, e a poesia mais elementar, mesmo no excesso culturalista. O primeiro poema é para ser cantado. É fácil descobrir com que música.
E depois de fevereiro, a “morte é um mercado”. A poesia admite tudo o que nos devasta?
A poesia trata (ou, acho, deve tratar) de tudo o que nos devasta. Para que escrever se não? Para nos tornar inúteis estetas? A devastação é também um mercado, claro. De facto, tudo é mercado no capitalismo terminal. Com maior ou menor valor (de mercado). Com mais ou menos valores (de humanidade). A poesia é um mercado e um bordel. Mas eu prefiro imaginá-la como uma feira franca, em que trocamos palavras, racionais ou irracionais, cheias de valor ou, talvez, completamente desvalorizadas. É uma chacinaria, um feirão de vísceras. Concedemo-nos demasiada importância. Pensamos que somos espírito e somos apenas carne.
A devastação é também um mercado, claro. De facto, tudo é mercado no capitalismo terminal. Com maior ou menor valor (de mercado). Com mais ou menos valores (de humanidade). A poesia é um mercado e um bordel. Mas eu prefiro imaginá-la como uma feira franca, em que trocamos palavras, racionais ou irracionais, cheias de valor ou, talvez, completamente desvalorizadas.
E chegamos a esse “amanhã talvez” onde cada verso se erige contra a própria fragilidade humana, e quanto mais ela se torna evidente mais as palavras se tornam nesse elemento insuperável e superior. Escrever é uma constante luta contra a própria língua?
Aqui, a palavra é, sempre, inefabilidade. O tópico constante do indizível. Nem devemos (porque nem podemos) ser originais. Devemos é sonhar sempre com essa combinação de palavras que destrua por fim o mundo. Essa é a guerra. O demais é uma ilusão. Ou uma profissão. Entre os meus resíduos de pós-modernidade (continuo o meu processo de desintoxicação) persiste a consciência de que escrever é desconstruir a língua. E isso, agora, para mim, é simplificá-la, reduzi-la à mínima expressão formal. E, mesmo assim, às vezes ainda pecas de hermeneuta e tornas complexo de mais o que deveria ser muito mais simples. Pecados de poeta adolescente, atos falidos ou simples erros de pura humanidade. A língua é mentira. O único real é o contacto dos corpos. Os cheiros e os fluidos. Esse é o combate: lutar contra a distância entre os corpos.
Mas o poeta ergue-se no fundo para impelir: a vida! É no fundo isso que procuras incessantemente na tua poesia?
Como todo o mundo, eu também dedico a minha existência a tentar encontrar a vida. E sei que morrerei sem encontrá-la plenamente. Porque, sejamos sinceros e tópicos, a vida é a procura da vida. E isso não é alta filosofia, é saber básico. A inefabilidade nas palavras, novamente. A distância nos corpos, novamente. Ficarei apenas com alguns aromas, talvez com algum toque superficial, olhares, sensações passageiras e o sabor de um vinho junto aos meus. Tudo é muito mais simples do que os nossos egos nos querem fazer ver. O final é sempre o mesmo.
Porque, sejamos sinceros e tópicos, a vida é a procura da vida. E isso não é alta filosofia, é saber básico. A inefabilidade nas palavras, novamente. A distância nos corpos, novamente.
Nesse “Prefácio final” há elementos como a velhice, o corpo, a ânsia, os algozes, as desventuras, as promessas de salvação, os deuses, os méritos. É um jorro imparável cheio de som e sentido. Queres falar-nos destes poemas?
É uma espécie de totum revolutum, poemas que não sabia bem como integrar no livro, mas que pensei que faziam pleno sentido para completá-lo. Que deviam estar. Porque eram. São as linhas de fuga que constroem a falácia da minha normalidade. Os tópicos que me corroem ou que me divertem. O poema que começa com o verso Não lembro um bom momento é, acho, aquele em que melhor tenho descrito a minha existência até hoje. Talvez a minha maior vitória contra a língua, contra o indizível. Pobre vitória, sei. Mas uma pequena satisfação, íntima. O que pareciam ser restos de série, parecem ter-se tornado no mesmo centro do livro.
E no epilogo um não-poema a dedicado a Carvalho Calero, o mestre ele mesmo outro grande poeta. Fico com a sensação que fora do poema todo o demais resulta desnecessário, o poema assumindo-se como potência libertadora. Neste tempo onde vivemos afogados de ego, ruído, velocidade, qual o papel da poesia na nossa contemporaneidade?
Esse poema é um divertimento, uma provocação, um manifesto, um “cago-no-mundo” e um “cago-na-pós-modernidade”, um grito contra a nova inquisição do hipercriticismo e da perversão de uma diversidade utilizada como arma falsamente progressista de repressão. Suponho que não deixa de ser também a infantil birra de um cis-hetero clássico, velho precoce, que deixou de compreender o mundo há muito tempo. E que já nem tem interesse em compreendê-lo. Era simplesmente dizer: não me deem lições de nada, façam favor. Que tudo já foi feito, que tudo já foi dito, que tudo já foi experimentado. Desde o início da humanidade. É um “adeus, juventude”, um “olá, velhice”. Uma brincadeira de um homenzinho que cresceu num bairro operário, crematório, que sofreu o alcoolismo paterno, o assédio nas ruas, a fraqueza vital de quem não tem quem o abrigue… Não me deem lições, que conheço bem essa merda toda (homofobia, machismo, xenofobia…). Que são já cinquenta e quatro anos a lutar contra ela. É, enfim, o poema que fecha o percurso da razão do perverso e da fé do converso. O final de um ajuste de contas incruento. De uma catarse íntima. A forma de engrossar e fechar o círculo do meu ego. É ruído. E ri muito ao escrevê-lo. Qual o papel da poesia agora? Qual o papel da poesia quando? Falsa medicina. Repito sempre o mesmo. A droga da verborreia e as vísceras a sujar uma cela de clausura.
Termino citando-te e perguntando-te “Somos mudos no país das mil línguas”?
Somos surdos. Falamos em excesso. Mesmo sendo mudos multilíngues. E escrevemos muito mais do estritamente necessário. É isso.
Entrevista por Tiago Alves Costa no PGL.