Afonso Becerra de Becerreá: “A dramaturgia é a engenharia do teatro e da dança” 15 Junho, 2018 – Publicado em: Alicerces, Entrevistas

Afonso Becerra de Becerreá, vem de inaugurar com Confio-te o meu corpo. A dramaturgia pós-dramática, Alicerces, a nova coleção da Através Editora.

Sob a direção de Teresa Moure, Alicerces apresentará especialistas que tratarão diferentes áreas de pensamento, arte ou sociedade, com uma focagem divulgadora, afastada dos usos académicos. Sairão do prelo dous títulos cada semestre e serão sempre prologados por uma pessoa especialista do lado português.

Os primeiros habitantes da coleção Alicerces são:

Com este motivo Teresa Moure, dialogou com ambos os autores. Publicamos nesta semana a primeira das entrevistas, anunciando já para a semana a seguinte.

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O teu é um ensaio feroz, no sentido de que conduz quem ler por um território pouco conhecido, mesmo para o público habitual do teatro. Poderias definir o teatro pós-dramático?

É aquele que afirma o próprio jogo teatral, na sua materialidade e concretização, sem submeter a ação a ideias previas, ao império da palavra ou à representação de uma história.

No teatro pós-dramático a palavra também pode jogar no palco, mas não o faz hierarquizando o resto dos elementos da composição cénica.

O teatro pós-dramático faz primar a sensorialidade, o movimento, o corpo, os objetos cénicos, a luz, os sons, sem estabelecer hierarquias entre os elementos compositivos e sem privilegiar o eixo diacrónico por cima do sincrónico.

Tendemos a ver o teatro como um espetáculo, onde alguém (a companhia, quem escreveu a obra ou quem a dirige) decide absolutamente o que encena. Porém não há teatro sem público. Que significa, nesse contexto, “Confio-te o meu corpo”? Dito noutras palavras, que é que a atriz/o ator aguarda desse coletivo a quem convoca? 

O primeiro que aguarda uma atriz/ator é que a espetadora e o espetador também atuem com eles participando no jogo que o espetáculo propõe. Por tanto, aguardam gerar uma atenção e uma empatia, para entrar num diálogo extraordinário, ou seja, fora do ordinário. Um diálogo empático que nos conecte e nos interpele no que diz respeito a algum aspeto determinado.

Confio-te o meu corpo vem a situar o corpo no centro do discurso, porque é no corpo onde tem lugar a vida e o jogo teatral. As coisas mais importantes sentimo-las no corpo: a paixão, o medo, a vergonha, a alegria… E quando falo do corpo, também o faço a partir de um sentido metafórico, no teatro e na dança, que na perspetiva pós-dramática som a mesma coisa, o corpo e a fisicalidade equivalem à forma dinâmica. O que importa nas artes do palco é o corpo das palavras, o corpo da voz, o corpo dos objetos cénicos, o corpo do movimento… a sua fisicalidade, a sua musculatura e textura. O mais importante sempre acontece no corpo.

Muitas das vozes que dizem defender o teatro (às vezes tratado como género menor na literatura) insistem em que o teatro também se lê. O que achas tu? É o teatro mais uma forma de literatura?

O teatro só se pode ler no teatro, da plateia ou no palco. Só se pode ler com o corpo e do corpo. Ler, aqui, é portanto outra metáfora.

Uma coisa é a literatura e outra coisa é o teatro, como o tem demonstrado de jeito implacável o dramaturgo português Jose Maria Vieira Mendes num dos livros que recomendo no último capítulo de Confio-te o meu corpo: “Uma coisa não é outra coisa”.

No entanto, uma demonstração fácil que me ocorre agora: as teatralidades pós-dramáticas não fazem diferenciação entre teatro e dança, em consequência, poderíamos, então, dizer que uma peça de dança também se pode ler?

Metaforicamente, sim. Eu quando assisto a uma peça de dança faço a minha leitura da mesma, de um jeito muito semelhante à leitura que faço da poesia de que mais gosto.

Ora bem, os textos que se utilizam como material para um espetáculo, em algum caso, podem ter altos valores literários e, por tanto, também ser ótimos para a sua leitura.

Em outros casos, ademais, estariam os textos destinados ao teatro que representa histórias (teatro dramático de base aristotélica), estas peças que se regem pela ordem narratológica permitem imaginar um espetáculo virtual na nossa mente e, portanto, são muito estimulantes para a leitura.

Se no teatro pós-dramático a figura autorial não é o deus motor da ação, se cabe a improvisação e o espetáculo torna-se um lugar onde está a suceder qualquer cousa de novo, de inédito, o texto emagrece e ganham peso outras componentes. Mas na cena galega, a dramaturgia como arquitetura da peça teatral está a ser realmente importante?

A dramaturgia é a engenharia do teatro e da dança. No caso das teatralidades pós-dramáticas trata-se de uma dramaturgia de processo de cerna colaborativa. Eis a essência do teatro: arte colaborativa por excelência.

Mas, ainda assim, faz-se necessária a figura de uma dramaturga ou dramaturgo, ou de uma equipa de dramaturgia, que estude e analise a composição das ações diversas e o seu sentido.

No teatro galego ainda há muitos encenadores que dispõe o espetáculo, o teatro, ao serviço de um texto, ilustrando-o, encenando-o. Confiam no texto escrito mais que no corpo das atrizes e atores, no corpo do relacionamento com o espaço… Para estes encenadores a dramaturgia é, por uma parte, a fidelidade ao texto e, por outra banda, tem que ver com a experiência, com uma certa intuição.

Mas o problema aqui é que dramaturgia vem ser equivalente à repetição de formulas de composição herdadas e mil vezes repetidas.

Se refletirmos um pouco sobre isto, não é difícil que nos apercebamos de que uma das características intrínsecas às artes é a inovação, a capacidade para nos surpreender, portanto essa dramaturgia supostamente intuitiva, que no fundo não é mais que a repetição de fórmulas, elimina a capacidade para que floresça uma obra de arte cénica.

No entanto, na Galiza, também há companhias que são conscientes da importância radical da dramaturgia e contam com profissionais específicos da dramaturgia, outorgando-lhes tanto ou mais valor que ao resto dos profissionais que participam no ato criativo.

Porém, é certo que a dramaturgia, ao ser algo que não se vê, costuma ficar descuidada. Sem uma dramaturgia eficaz não existe um espetáculo eficaz.

És professor da ESAD de Galiza, em Vigo. O plano de estudos vigente está feito para formar especialistas nos diferentes ofícios das artes cénicas e teatrais? Que limitações deve enfrentar já o teatro galego?

Sim, sou professor de dramaturgia e escrita dramática. O plano de estudos está feito para formar especialistas nos diferentes ofícios das artes cénicas. Mas é muito curioso que, devido, suponho, ao pouco prestigio que têm as artes cénicas na Galiza, na especialidade de Direção de cena e dramaturgia, que é fulcral para o teatro e a dança, apenas se apresentam pessoas que queiram formar-se. Por quê? Por que na Galiza, sem um sistema teatral desenvolvido, ainda se acha que um espetáculo o pode dirigir qualquer pessoa que goste do teatro?

A especialidade de Direção de cena e dramaturgia é estratégica numa escola superior de arte dramática, porque é a que prepara as futuras criadoras e criadores do palco, as dramaturgas e dramaturgos, também os profissionais do guião audiovisual e de cinema. Na Catalunha, por exemplo, as/os guionistas saem do Institut del Teatre ou da Escola Superior de Cinema. Eu tenho muitos ex-companheiros de estudos que fazem roteiros para as séries de ficção da TV3, porem, na Galiza, as produtoras procuram pessoas formadas em jornalismo. Polo que se vê, ainda não sabem que na ESAD se faz treino de escrita de guiões e que a mesma dramaturgia e escrita dramática prepara profissionais dialoguistas etc.

Bom, o teatro profissional galego tem uns quarenta anos e a ESAD começou em setembro de 2005. Tudo isto esta a começar e as instituições publicas relacionadas com o âmbito da cultura e das artes cénicas tampouco ajudam muito.

O principal desafio que deve enfrentar o teatro galego já agora é o de tomar os espaços públicos, tomar os teatros. Impõe-se uma reunião de todas as associações do sector para, à margem das suas diferenças, conseguir que exista cada semana um cartaz teatral e de dança nas cidades galegas.

Também acho urgente a formação artística, e não só de gestão, de quem programa os teatros públicos. O não submetimento da programação ao vereador ou vereadora de cultura do momento, ou à rendibilidade económica (a bilheteira). As artes cénicas pertencem ao âmbito cultural e a cultura, tal como a sanidade ou a educação, não podem medir-se pela sua rendibilidade económica nem estar a expensas desta.

Ultimamente venho observando que muitas pessoas adultas afirmam não ir ao teatro nunca. Pensam que o teatro é ver representado Shakespeare ou Calderón de la Barca, e talvez julguem que esta arte morreu com o nascimento do cinema ou, especialmente, com este furor do ecrã que experimentamos. Se fosses o responsável duma campanha publicitária para animar o pessoal a ir ao teatro, que lema usarias?

Vem a mirar-me aos olhos. Tremamos juntos. Confio-te o meu corpo”